12 de setembro de 2004

Letras e números

Jornal O Estado do Maranhão 
As eleições deste ano trouxeram à discussão o analfabetismo dos candidatos a vereador e prefeito, bem como outras curiosidades que, entra ano sai ano, divertem o eleitor, a exemplo dos nomes e apelidos folclóricos e das propostas, mais folclóricas ainda, de melhoramento de suas cidades.
Eles não prometem tão-só o paraíso na Terra, desejo de todos, pois entre esperar a felicidade no além ou tê-la nesta vale de lágrimas terreno, não há quem não prefira a segunda opção, de gozo imediato. Tenho a impressão de serem muitos deles uns grandes gozadores com a boa fé dos eleitores. Eles chegam perto de garantir, com a inflação de postulantes auto-intitulados evangélicos, a salvação eterna em troca de voto que, afinal, devem pensar, só custa o trabalho de ir a um local de votação e apertar alguns botões de máquinas eletrônicas.
Parece não haver dúvida sobre a proibição, pela Constituição de 88, em seu artigo 14, parágrafo 4º., da eleição de pessoas incapazes de ler e escrever: “São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”. Na prática, a Justiça Eleitoral, na ausência de comprovação de alfabetização, não recusa o pedido de registro da candidatura. Em vez disso, pelo menos em alguns Estados, examina o pretendente, por meio de provas escritas, e toma uma decisão.
No entanto, como não existe ainda uma forma padrão de realizar os testes, cada juiz, diante de casos concretos, avalia esses autênticos vestibulandos da vida política como lhe parece mais adequado. Desse procedimento imposto pelas circunstâncias, pode surgir muita confusão. Digamos que um juiz avalie como alfabetizado um ansioso aspirante a prefeito. Não causaria surpresa a ninguém um colega do magistrado considerar analfabeto o mesmo postulante.
A explicação dessa divergência está na forma de avaliação adotada pela justiça. Os testes aplicados em cada município ou em cada comarca são diferentes em forma e conteúdo, porque diferentes são as pessoas que os elaboram e diferentes será confuso, portanto, o conceito de analfabetismo de cada uma delas, na falta de critérios objetivos de julgamento. Ou seja, a subjetividade prevalece numa situação como essa. Saber ler e escrever, embora precariamente, seria suficiente para alguns juízes como prova de alfabetização, enquanto bastaria, apenas, saber assinar ou desenhar o próprio nome no entendimento de outros.
Talvez tudo resultasse mais simples se a interpretação da exigência constitucional fosse menos liberal e a simples falha em apresentar certificado de conclusão do primeiro grau, por exemplo, eliminasse imediatamente o potencial candidato. Casos excepcionais poderiam merecer um exame dentro de regras claramente estabelecidas.
Em que pese, todavia, a legítima preocupação da justiça e de muita gente neste país com a escolaridade de nossos representantes municipais, origem de toda essa discussão de forma alguma ociosa, arrisco-me a dizer que o maior problema não é de falta de luzes. Ao contrário, é de excesso, não com respeito às letras, mas aos números. Essas pessoas, ou melhor, parte delas, para não ser injusto com os inocentes, apesar do analfabetismo e da aparente cegueira intelectual, têm os olhos bem abertos para as coisas práticas e uma habilidade muito útil no combate à pobreza deles. Eles são muito bons em aritmética, elementar e avançada, a bem dizer.
Essa destreza lhes permite subtrair com muito engenho, somando bens ao patrimônio privado. Se não é o milagre da multiplicação dos pães, prova da existência de milagres, é a multiplicação da própria riqueza, ainda que adicione à miséria e descrença alheias. Está certo que, às vezes, ficam divididos e chegam a confundir o seu com o dos outros. Mas, quem nunca ficou confuso com a tabuada algum dia?

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