Direito à vida
Jornal o Estado do Maranhão
Combinam-se, no assassinato da ex-namorada do goleiro Bruno, do qual ele é acusado, com razão, parece, fatores culturais e não culturais, na explicação de um crime de grande violência mas não raro e não o mais chocante de quantos o noticiário policial diário nos informa.
O primeiro fator é certamente a mentalidade machista, que ainda tem larga aceitação na sociedade brasileira. Assim, a mulher, aos olhos de enormes e representativas faixas da população – masculina e feminina – é um ser feito com o fim de servir aos machos da espécie em todas as coisas e mais uma.
A essa mentalidade deve ser adicionado, neste caso tão em evidência agora, o status do jogador Bruno como uma pessoa de sucesso, crescente fama e perspectiva de continuado desenvolvimento profissional e, portanto, de elevadíssimo nível de renda e capacidade de influenciar pessoas. Ou talvez fosse melhor dizer que a operação não é de adição, mas de multiplicação ou potenciação. Tais componentes servem, quase invariavelmente, para dar a muitas pessoas nessa posição a sensação de imunidade às imposições do sistema de justiça o que, de qualquer maneira, não é uma suposição infundada, consciente ou não, em vista da ineficiência, da lerdeza, da burocracia, do viés em favor de quem tem dinheiro e da injustiça da justiça.
Como Bruno mesmo disse, segundo a imprensa, à ex-namorada e mãe de seu filho de quatro meses, em nome de quem ela pedia o reconhecimento de paternidade e pensão alimentícia, ele a mataria e ninguém se importaria, algo bem plausível por se tratar de uma garota de programa. A moça já o tinha denunciado à polícia sem que nenhuma providência tivesse sido tomada, como se ela não merecesse proteção do Estado. Imagino os risinhos de deboche de quem recebeu a queixa. Então essa aí tá querendo proteção. Merece é umas porradas! Não funcionam assim as coisas? A Lei Maria da Penha pegou ou não?
Acima e além disso tudo, no entanto, encontra-se algo mais forte, mais consistente e mais impositivo: a natureza humana no que ela tem em comum com os outros seres vivos, se for possível, mesmo, falar dela como especificamente humana, separada da dos outros. Dela, da natureza, não somos nós parte necessária, não contingente? Como sobreviveríamos num mundo a que não pertencêssemos?
A afirmação de serem os humanos capazes das maiores baixezas e nobrezas, em todos os graus e de todos os modos, de encarnarem deus e o diabo, o bem e o mal, não é menos verdadeira por ser lugar-comum. (Incluo no “mal” os psicopatas iguais a Bruno, como incluo no “bem” as pessoas incapazes de matar uma mosca, como se diz). É assim mesmo, o espectro que vai de um extremo a outro é amplo entre as pessoas, como o é de uma pessoa em relação a ela mesma. O doutor Jekyll e o senhor Hyde.
Chefes nazistas eram capazes de se emocionar verdadeiramente com a música de Wagner por suas ressonâncias de um suposto espírito germânico, mas também com Mozart, Beethoven e outros grandes compositores da música clássica. Terminadas as audições voltavam tranquilos e embevecidos à administração dos campos de extermínio de judeus, tarefa a que se dedicavam com método e entusiasmo, sem dores de consciência, sob o escudo do “cumprimento do dever”.
Quantos homens e mulheres virtuosos, santos indiscutíveis, reconhecidos por suas virtudes não propriamente celestiais, mas terrenas, não se consumiram de remorsos por atos que perante sua própria consciência eram baixos e repulsivos e diante dos outros causaram tanto espanto quanto os atos chocantes de Bruno nos causam neste momento? Quantos santos não são diabos e quantos diabos não são santos?
Nada do exposto aqui, é evidente, justifica o crime. Este é universal e universal nossa repulsa. Temos a obrigação de lutar pelo aperfeiçoamento institucional que possa proteger a vida em sociedade. O processo civilizatório é feito assim e por isso (permitam-me o antropocentrismo) o homem está no topo da vida na Terra, pois, tendo desenvolvido consciência de si mesmo e senso moral sabe que não só os fortes têm direito à vida.
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