Meu mal, meu bem
Jornal o Estado Maranhão
Quem teve a paciência de me ler quinze dias atrás, no dia 11 deste mês de julho, haverá de se lembrar de minhas considerações acerca do potencial de crueldade – e de bondade, para não sermos injustos com a nossa própria espécie – do ser humano. Alguns leitores me enviaram mensagens em que eu notei certo espanto com minha visão do assunto, como se eu fosse descrente da humanidade, percepção bem longe da verdade. Minha motivação fora o chocante assassinato de Eliza Samudio a mando, tudo indica no momento, do goleiro do Flamengo, Bruno, crime executado por seus comparsas e tão chocante quanto o da menina Isabela Nardoni, assassinada pelo próprio pai e pela madrasta (lembram-se ainda deste caso?).
Eu dizia então: “A afirmação de serem os humanos capazes das maiores baixezas e nobrezas não é menos verdadeira por ser lugar-comum. [...] Chefes nazistas eram capazes de se emocionar verdadeiramente com a música de Wagner [...]. Terminadas as audições voltavam tranquilos e embevecidos à administração dos campos de extermínio de judeus, tarefa a que se dedicavam com método e entusiasmo, sem dores de consciência [...]”. Isso é a nossa história, um impulso em direção ao mal, coexistente com o bem, que só é domado pela necessidade de sobrevivência do grupo, das aglomerações. Civilizar-se é, então, estabelecer regras de convivência na sociedade. Elas devem produzir não exatamente igualdade de resultados, porque habilidades e talentos são desigualmente distribuídos na população, mas de oportunidades, incluídas aí as de sermos livre de ameaças à vida.
Em17 de julho vejo na Folha de S. Paulo uma entrevista com Gonçalo Tavares, escritor português de 39 anos, nascido em Angola e considerado o grande nome da nova geração da literatura de Portugal. Dele dizia José Saramago que não tinha direito de escrever tão bem aos 35 anos. Seu romance Jerusalém está na lista europeia dos “1001 livros para ler antes de morrer – um guia cronológico dos mais importantes romances de todos os tempos”. Foi vencedor dos prêmios José Saramago (2005); Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian (2002); Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores; Conto da Associação Portuguesa de Escritores (2007). Tem 24 livros publicados, o primeiro em 2001 apenas.
Seu romance A máquina de Joseph Walser será lançado pela Companhia das Letras nas próximas semanas no Brasil, onde ele já tem outros livros por editoras daqui. Ao falar à Folha sobre o livro, parte de uma tetralogia chamada o Reino, ele diz: “Nenhum de nós está fora do barco da maldade”, sentimento de que, afirma com razão, o ser humano é potencialmente uma máquina, mas de bondade também.
Essa visão não implica descrença na humanidade. Representa em verdade o reconhecimento de que são humanos comportamentos classificados por nós como de animais. Vejam agora o paralelo das palavras de Gonçalo com minha afirmação sobre os nazistas: “Uma coisa que nos espanta é quando vemos uma biografia sobre Stálin ou Hitler e outras pessoas terríveis e percebemos que elas se apaixonaram, que havia quem gostava delas, que tinham gestos carinhosos”.
Minha intenção é dizer isto. Assunto como esse, com implicações na nossa visão do mundo e da vida, aparece com frequência como tema literário, é comum entre os grandes romancistas, como o provam os muitos livros que o adotam em todas as literaturas. Não é propriedade de ninguém, pertence a uma espécie de fundo comum ao qual não precisamos contribuir para dele fazer retiradas. Está à disposição de todos, tem alcance universal. Tratado pelos grandes escritores pode servir de matéria prima a grandes obras. Este parece ser o caso de Gonçalo Tavares, segundo a crítica e seus leitores. Pretendo conferir em breve, quando o livro estiver nas nossas livrarias ou à venda na internet. A ter-se fé numa afirmação de Saramago, quem ler esse jovem romancista agora, estará lendo um ganhador, daqui a duas décadas, do prêmio Nobel de Literatura. Se não, em menos tempo.
Tudo que é estranho é humano também.
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