9 de janeiro de 2005

Ainda o Reggae

Jornal O Estado do Maranhão
Volto ao reggae. É que acabo de ler um excelente artigo, cujo título é “O Nacional-burrismo”, de Sérgio Paulo Rouanet, filósofo, cientista político e ensaísta, diplomata de profissão, ex-ministro da Cultura do governo Collor e membro da Academia Brasileira de Letras. Ele ataca, justificadamente a meu ver, o nacionalismo cultural, “uma das idéias mais perigosas que jamais afligiram o planeta”. O perigo está na tendência à hipervalorização da própria cultura por grupos sociais em detrimento de outras. De fato, se dermos uma olhada nos livros de história, veremos sem nenhum esforço o quanto essa idéia já provocou de conflitos e guerras. Mais, até, do que interesses puramente econômicos.
Em verdade – parece-me pertinente dizer – muito se ouve em círculos semiletrados cujos freqüentadores se passam por donos de sólidos conhecimentos sobre qualquer coisa, uma defesa ingênua e desinformada de uma suposta cultura tradicional, de verdadeiras raízes populares, sempre contraposta a uma outra, das classes dirigentes, artificial porque impregnada de elementos “de fora”, submissa à globalização, o que quer que esse termo signifique e, portanto, deficiente de cor local, de brasilidade.
Com essa assombração, cria-se uma falsa disputa. De um lado, a autêntica cultura do povo e, de outro, a das elites, inevitavelmente artificial, como se a primeira fosse, ou pudesse ser, impermeável a qualquer influência externa, e a outra se formasse simplesmente por imposições originadas em culturas “estrangeiras”. Deriva daí a idéia de que somente as “nossas” manifestações populares são “originais”, quando, muitas vezes não são uma coisa nem outra.
Mas, onde entra o reggae nessa história toda? Entra no mesmo capítulo do samba, do futebol, do Carnaval, do Natal, do Papai Noel e, mais recentemente, do Hallowween, manifestações alienígenas, todas essas, incorporadas, porém, ou em período de incorporação, à cena local. É o capítulo da afirmação de nossa identidade cultural de brasileiros e, mais especificamente, de maranhenses, através da abertura para o mundo e da absorção das melhores características de outros povos. Essa é uma forma de enriquecimento nessa área. Imaginem se um xenófobo da época, com base naquela visão distorcida, tivesse impedido Charles Miller de trazer o futebol para o Brasil no final do século XIX. Seria um ganho ou uma perda cultural?
Tomemos um exemplo de importação lingüística. Deletar chegou à nossa língua através do inglês to delete. Eu dizia em uma crônica de fevereiro de 2003 que esse verbo tem pedigree (esta palavra é outra importação do inglês, mas com origem no francês), porque sua origem está em deletus, particípio passado do verbo delere, cujo significado é suprimir, remover, destruir. Mas, muita gente rejeita o rejeita por considerá-lo cópia servil do inglês. Ora, Rouanet, toma como exemplo o mesmo deletar para dizer com acerto que no Brasil o problema não está nas importações (neste caso inteiramente justificada), mas na ignorância acerca do nosso idioma e na incultura generalizada, evidência do fracasso do nosso sistema educacional.
Precisamos considerar tudo isso para entender, mas não justificar, a notória reação contra o reggae em nosso meio. Podemos importar o futebol (football), mas não o reggae; o Natal, mas não o reggae; o Papai Noel (São Nicolau), mas não o reggae; e assim por diante. O certo é isto. Apesar de todas as resistências, o reggae veio para ficar. Amalgamado com traços culturais há mais tempo por estas praias, produziu algo nosso, que por sua vez continuará a sofrer mudanças, como todas as coisas vivas sofrem. Não será surpresa se chegar o dia de alguém falar dele como uma autêntica tradição maranhense necessitada de proteção contra ameaças de todo tipo.

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