A missa do galo


Jornal O Estado do Maranhão

Entre as muitas obras primas do conto produzidas por Machado de Assis, uma é de minha especial predileção, Missa do Galo. O conto é narrado em primeira pessoa por um adulto, Nogueira, incapaz de entender acontecimentos de muitos anos antes, na véspera de Natal, na casa de Meneses, escrivão, contando o rapaz de então dezessete anos. Era ali que Nogueira se hospedava quando vinha de Mangaratiba. Conceição, casada com o dono da casa, tinha trinta anos. Naquela noite especial, o escrivão “foi ao teatro”, senha que usava quando de suas idas à casa da amante, local de seus pernoites uma vez por semana. As pessoas da casa – a esposa, sua mãe e duas escravas – já estavam recolhidas. Nogueira ficou na sala à espera de um amigo com quem iria à Missa do Galo à meia noite em uma igreja próxima. Depois de algum tempo, Conceição veio à sala. Na conversa entre ela e o rapaz, nada acontece objetivamente, mas tudo, subjetivamente. O comportamento dela é ambíguo, como em muitas mulheres na obra ficcional de Machado, numa atmosfera de solidão, sensualidade e erotismo, situação não compreendida por ele em sua ingenuidade adolescente, senão intuitivamente ou nem dessa forma.
Como exemplificação da atmosfera do conto e da atitude de Conceição, basta este trecho: “De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos”.
Que Machado tenho localizado a situação na véspera do Natal, criando um contraste entre esta comemoração religiosa e a atitude de Meneses, indo dormir na casa da amante, e também a de Conceição, relativamente ao rapaz, mais nos faz perceber a maestria do Bruxo do Cosme Velho. Tão marcante é o clima da narrativa que às vezes nos esquecemos desse choque.
Falo desse conto porque as missas do galo não são mais celebradas à meia noite em nossa cidade, mas bem antes, às 8 horas ou mesmo às 7 horas da noite. O motivo está na a preocupação com a segurança dos fiéis. O horário tradicional, como ainda ocorre na maioria dos outros lugares, os exporia a assaltos e outros tipos de violência. Como não há segurança pública adequada em São Luís, o jeito é a antecipação. Felizmente para seus frequentadores, a televisão faz a transmissão da Missa do Galo celebrada pelo bispo de Roma. Pelo menos os que se contentarem com essa forma de estar presente ficarão satisfeitos.
Uma das explicações dadas pelos pesquisadores do assunto, de sua realização à meia noite, é esta. Seu início a essa hora, junto com o começo do dia de Natal, fazia com que, ao retornarem a suas casas, os fiéis pudessem ouvir os primeiros cantos dos galos na madrugada já adiantada, pois aquela não era celebração breve. Em Roma, ela vem do século V, na basílica de Santa Maria Maior. Hoje, no entanto, é feita na basílica de São Pedro. Outra explicação é a da lenda pela qual um galo teria cantado à meia noite de 24 de dezembro, anunciando a chegada de Jesus Cristo e teria sido essa a única vez em que o fez nessa hora. Outra ainda fala da batida das 12 badaladas da meia noite de 24 de dezembro. Cada lavrador de Toledo, na Espanha, matava nesse momento um galo, em memória daquele que cantou três vezes quando Pedro negou Jesus. A ave era, depois, levada até a Igreja como oferenda aos pobres. Cada um de nós pode escolher a melhor explicação a seus olhos. Mas a tradição existe e cativa cristãos e não cristãos.
É pena que, tão bonita como é, e tocante mesmo para os não crentes aculturados na doutrina católica, tenha de ter a tradição alterada porque bandidos bem humanos estejam à vontade na prática de seus crimes. Não sei se irão para o inferno. Não sei mesmo se esse é um lugar suficientemente ruim para abrigar esses tipos. Não sei sequer se o inferno existe. Mas existem cadeias e lá deveria ser o local de residência permanente deles de onde não deveriam sair nem para ir à missa algemados.

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