8 de agosto de 2004

Um professor

Jornal O Estado do Maranhão 
Recebo um cartão de pêsames de Kalil Mohana e vou às gavetas procurar velhas fotografias de meu tempo do antigo ginásio no Colégio Marista. Ele não está em nenhuma apesar de ter sido meu professor de história. Estão o Irmão Ivo Anselmo, professor de Química, com seu porte marcial e ares germano-gaúchos de chefe escoteiro disciplinador e de falso durão, quase se ouvindo seu sotaque de um tipo que eu nunca ouvira antes aqui nas lonjuras de nossa província; o Irmão Raimundo Lobato, trazendo em tudo a marca de seus ancestrais do Marajó, professor da fascinante física, moreno em contraste com o branco Anselmo, os dois, um do extremo Sul do Brasil e o outro do Norte, refletindo conjuntamente a heterogeneidade do nosso povo; Irmão Geraldo, nordestino valente que nos obrigava a decorar todos os afluentes do rio Amazonas, das margens esquerda e direita, sem perder nenhuma chance de mostrar a camisa do Flamengo invisível na foto, sob a batina um pouco desleixada; o Irmão Pio, de óculos Ray-ban escuros e o eterno solidéu que lhe encobria a careca, trazendo à lembrança os pontos bons e maus dados por ele a cada aluno para cada resposta certa ou errada a questões de análise sintática com que ele fazia o bem de nos saturar o ano inteiro.
Não importa a ausência de Kalil. Mesmo sem estar nas fotos, a sua personalidade sedutora não se apagará da memória de seus alunos. Sua pedagogia transformava as aulas num autêntico folhetim educacional, levando os estudantes a ficar ansiosos pela próxima lição, ou, o próximo capítulo das aventuras e desventuras dos espanhóis, incas, maias e outros povos. Ele próprio, com extraordinária imaginação, senso de humor e modos espontaneamente teatrais era a atração principal das aulas. “Os espanhóis avançam, os maias preparam-se para a luta. Conseguirão repelir os invasores ou serão derrotados? Quem vencerá esta batalha decisiva? Saberemos na próxima aula...”. Era como nos seriados do cinema. Via-se num domingo um episódio que terminava em grande suspense, com o herói à beira do precipício ou a ponto de, amarrado nos trilhos, desintegrar-se sob as rodas de um trem. Somente no fim de semana seguinte se via a continuação, à semelhança dos folhetins eletrônicos de hoje, as telenovelas. Para nosso grande alívio o bem sempre vencia o mal, como não acontece no mundo real.
As viagens de estudos por todo o Brasil era outro recurso pedagógico usado com muita inventividade e sucesso por ele. Elas tinham sua parte recreacional, é claro. Mas, a capacidade de Kalil de despertar em nós o desejo de conhecer a história dos lugares que visitávamos, como a de Alcântara, ou de descobrir as potencialidades econômicas de várias regiões do Brasil, nas visitas a projetos de exploração mineral, por exemplo, tornava o que poderia uma chata obrigação em agradável recreação. Aprendíamos quase sem perceber, de forma indolor, podemos dizer.
A sua família é um símbolo do sucesso dos imigrantes libaneses nesta terra e da sua contribuição a nossa cultura e economia. Kalil, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, deve-nos um livro sob a história de seus antepassados em nosso Estado, tarefa inteiramente dentro de sua capacidade intelectual Entre seus irmãos, está o saudoso João Mohana, sacerdote, médico, escritor autor de uma obra reconhecida nacional e internacionalmente e membro da Academia Maranhense de Letras em que foi titular da cadeira 3 cujo patrono é Arthur Azevedo, presentemente ocupada pelo filólogo Antônio Martins de Araújo.
Ibrahin, Julieta, Olga e as lembranças de Alberto, já falecido, completam essa família de pessoas dotadas daquela cada vez mais escassa, mas velha e boa honestidade, de autêntica modéstia e admirável inteligência.

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