A Mãe

Jornal O Estado do Maranhão 
Há dores particulares que se tornam universais por serem comuns a todos nós. Quem não as sentiu ainda, um dia as sentirá e sofrerá com elas, tornando-se mais humano. Uma delas é a da morte de uma pessoa amada. Penso, assim, que os leitores serão compreensivos e não se importarão se eu lhes falar sobre a nossa mãe, minha e de muitos irmãos, Maria Raposo Moreira. Ela acaba de morrer aos 83 anos, em paz consigo, com o mundo e com o seu Deus de todas as horas.
Quem sabe no futuro, algum curioso descobrirá, ao ler velhos jornais, a existência em São Luís do Maranhão, onde passou a maior parte de sua vida, de uma mulher nascida em Cajapió, que, por sua inteligência excepcional, temperamento marcante, caráter firme e aptidão especial para criar filhos, ao lado de seu grande amor, Carlos Moreira – eles agora felizes se reencontram, a fim, desta vez, de ficarem juntos por toda a eternidade –, cumpriu diligentemente a missão de mãe. O senso de responsabilidade, a disciplina férrea, a honestidade, o gosto pelos estudos, pela leitura e pelas coisas do espírito, a crença no irresistível poder libertador da educação, a fé em Deus e a lealdade à Igreja Católica, a idéia de progresso pessoal por esforço próprio, a importância da família, a precaução contra a amizade de interesse, a preservação da dignidade, a altivez ante as adversidades, o respeito aos idosos, numa sociedade habituada a desprezá-los sem remorsos, eram valores e atitudes que ela cultivava sem descanso e buscava imprimir nos filhos.
Tendo um grande talento para as artes, escrevia pequenas peças de teatro, com sua letra surpreendentemente perfeita de canhota obrigada a escrever com a mão direita quando criança, na época em que, ali perto da igreja de São João, participávamos das atividades sociais da loja maçônica freqüentada por meu pai, a Beckman. As histórias de sua terra natal, nos soberbos campos da Baixada Maranhense, nunca ausentes da lembrança nem dos brilhantes olhos que sorriam com certa tristeza altiva e lhe faziam mais belo o belo rosto, a brisa morna e suave daquelas terras e mares nos fins de tarde balançando a rede branca no alpendre da pequena fazenda, as histórias de navios encantados, a pobreza do povo, a luta dos parentes humildes pela sobrevivência, a aventura do irmão Cursino que fora embora de repente para o Rio de Janeiro, os anos de estudos, mais tarde, em São Luís, na Escola Agrícola e no Liceu na mesma turma do irmão mais próximo, Alvacir, a saudade dos outros irmãos, Haroldo, Saul e Luizinho, presos ainda ao chão de nascença, mas depois encaminhados à capital, todas essas lembranças se transfigurariam nos grandes romances e contos que escreveria, caso não tivesse sacrificado essa vocação em favor da família.
Tinha gosto pelo cinema, em especial os grandes musicais de Hollywood dos anos quarenta e cinqüenta, sendo ela própria dona de uma beleza das atrizes dessa época, com os penteados altos que alongavam para cima o rosto de linhas retas dela, como se vê no retrato de casamento a interrogar o futuro em uma pequena casa do centro da cidade, no antigo Caminho da Boiada. Alguns anos após, “com suas saias godês e aquele sorriso americano, ela era princesa e castelã da Casa do Areal...”, como o sobrinho Luiz Alfredo disse nos 80 anos dela.
Na comprida mesa retangular amarela dessa nova casa, se acomodavam, já crescidos, os meninos, como ela nunca deixou de chamar os filhos, cansados do trabalho, para almoçar ou jantar sob seu olhar ansioso e preocupado. Teria tudo corrido bem ou alguém lhes havia feito algum mal? A saúde estava boa? Perguntas feitas mais com olhares e gestos do que com palavras. Se alguém lhes feria era porque não conhecia a inteligência, a boa educação e a energia para o trabalho, as virtudes todas, enfim, vistas por ela nos filhos com o olhar orgulhoso de mãe. Afinal, quando pequenos, eles somente faziam alguma coisa errada sob a influência maléfica dos colegas travessos, aqueles garotos mal educados sobre os quais ela exercia severa vigilância. Muita ofensa aceitaria e perdoaria, como boa cristã, mas não lhe tocassem mesmo de leve nos filhos ou no marido.
Podemos vê-la ainda, em meio a essa nuvem que nos embaça os olhos com tantas lágrimas de tristeza, a deslizar pela casa, orientar as empregadas na limpeza de tudo e na preparação das refeições, chamar os meninos para o estudo e autorizar as brincadeiras, mas só depois de cumprida a regra sagrada de fazerem as lições de casa.
Valho-me mais uma vez das palavras de Luiz Alfredo, que a admirou e amou como se fosse um filho de verdade: “Mas deixa tantos retratos na minha lembrança! Entre eles, aquela conversa pausada e sentenciosa, na cadeira de balanço, iluminada a espaços pelo seu sorriso docetriste”.
A presença é tanta nessa aparente ausência!

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