21 de abril de 2019

Tempo de Manguá

Alfredo Raposo


Meu avô materno não foi tropeiro, mas nasceu e cresceu numa época em que as cargas viajavam em lombo de burro do litoral até o sertão. Pelo menos, era o que via, de sua cidadezinha natal, no interior do Piauí, coisa que parece ter-lhe despertado um especial apreço pelo ofício. E, no convívio com os netos, ele frequentemente assumia de caçoada a postura disciplinar e o vocabulário daquela gente. Não sei por que mecanismo associativo, mas essa lembrança me veio, ao saber da decisão do presidente Jair Bolsonaro de adiar o reajuste do diesel programado para vigorar a partir da sexta-feira, dia 12/04. O fato provocou microssismos na política e nos mercados financeiros, Bolsa, câmbio, risco. E deixou zonza minha bússola pessoal, pondo-me a procurar hipóteses explicativas.

Fala a mídia do alegado temor do presidente, ante o risco de o aumento desencadear uma nova greve que, avalia, repetiria os enormes estragos e desgastes da anterior. No seu governo, não! Ao mesmo tempo, ele reitera sua simpatia pelo trabalho dos caminhoneiros em termos tão fundos, que quase chega a dizer (e não exageraria muito na imagem) que eles carregam o Brasil nas costas. Sim, é amor antigo, não esqueçamos seu polêmico apoio, com vídeo e tudo, à greve anterior. O que levou à decisão presidencial pode, então, ser explicado por uma mistura de dois sentimentos, amor e medo, ou seja, por uma espécie de terror sagrado, mais do religioso do que do político. Algo nada presidencial. Vejo, ainda, outro traço bem bolsonariano, o desejo de manter “coerência” com suas atitudes passadas. O horror de ser acusado de fazer a “velha política”, mudando de postura ao subir ao poder. Os caminhoneiros, por sua vez, classe que lhe teria dado um apoio maciço nas últimas eleições, parece agora animada, como que se achando de costas quentes. Com crédito. Daí que minha foto inicial tenha saído borrada: um conta-corrente sendo atualizado? Ou a volta do cipó de aroeira, a nêmese do oportunismo?...

O que importa é que o setor do transporte rodoviário de cargas vive um malaise, um desequilíbrio surgido nos anos mais recentes e tornado crônico, no sentido de que não logra se resolver pela via clássica do repasse de custos. Como economista, sou tentado a buscar as causas, esmiuçando, peça por peça, o mecanismo de mercado. Pois não há dúvida, algo cresceu demais na oferta ou caiu demais na demanda e teima em não ter volta. Criou-se ou uma subdemanda, ou uma superoferta. Em economês, teriam ocorrido deslocamentos estruturais das curvas de oferta e de demanda. Ora, quedas na demanda podem dever-se à redução global do volume de cargas a transportar, ao crescimento das frotas próprias, substituidoras das comerciais, ou ao aumento da oferta dos modais concorrentes, o ferroviário e o hidroviário (para não falar no marítimo de cabotaLuiz gem). Já os aumentos na oferta decorrem da expansão da frota de caminhões comerciais. São essas as pistas que têm de ser seguidas, antes de se ter um diagnóstico sólido do que está contribuindo para a situação. Sem dispor de muitos dados, faço aqui um raciocínio de sentido inverso, procurando deduzir o que aconteceu do que não pode ter acontecido.

A redução do volume de cargas, medido em toneladas/km/ano, se houve, deve ter sido pouco expressiva. No triênio 2014-2016 o PIB caiu algo como 8%, mas na produção física a queda foi certamente menor, se é que houve. A produção industrial encolheu, mas, em compensação, aumentou a tonelagem produzida pelo setor primário (produtor de bens de baixa densidade econômica: muita quantidade por unidade de valor). Refiro-me, mais especificamente, ao agronegócio, cliente, como a indústria, do setor de transporte rodoviário (a mineração, que igualmente escapou à crise, usa a ferrovia). E se o aumento da tonelagem produzida veio, como parece, mais do Centro-Oeste, distante do litoral, a demanda de fretes dessa região deve ter crescido mais que proporcionalmente, com resultante positiva.

Quanto aos modais concorrentes, particularmente o ferroviário e o hidroviário, desconheço investimento pesado de operação recente, que tenha sido capaz de reduzir a demanda pelo transporte rodoviário. Os projetos ferroviários importantes ainda são uma perspectiva no horizonte. O mais próximo, a ferrovia Norte-Sul só opera, precariamente, no trecho entre Açailandia-MA e Porto Nacional-TO. O trecho central (Porto Nacional-Estrela d’Oeste-SP) foi concedido, em março último, à iniciativa privada (empresa Rumo Logística, do grupo Cosan) e deverá levar ainda dois anos, para ser concluído. Não tem como ter deprimido o transporte rodoviário, nos últimos cinco ou seis anos. Resta a expansão das frotas, resultado de duas componentes: o aumento da vida útil média dos veículos e a entrada de veículos novos. O aumento da vida útil faz crescer a frota, às custas da elevação do custo operacional. Mais sadia é a outra componente, pois resulta em crescimento com baixa de custo.

Os dados que obtive sobre idade média são inconclusivos. Parece ter subido algo como 1 ano, ao longo da década (de 9,6 anos, em 2012, para 10,8, em 2017). Mas há unanimidade quanto a um crescimento notável da frota comercial de caminhões. No total, todas as categorias incluídas, ela passou de 1.378 mil unidades, em 2009, para 1.770 mil, em 2013, e daí para 1.888 mil, em 2017 (dados do Sindipeças). Ou seja, enquanto o PIB ficava praticamente estagnado, teria crescido a um ritmo anual médio de 4,0%. Ritmo que foi de 6,5% anuais no subperíodo inicial (2009-2013). Não é de estranhar se, na conjuntura recessiva que se seguiu, isso tenha dado origem a uma baita oferta excedente. Matéria publicada na seção de Economia de O Globo de 3/6/2018 apontou, com base em cálculos de especialistas, um excesso de 300 mil caminhões, correspondente a 16,0% da frota comercial de 2017 (o total é maior, se incluídos os veículos não-comerciais, de uso próprio. Mas sobre este segmento as informações escasseiam). Ou seja, são dois meses de férias anuais forçadas... Na prática, as empresas transportadoras, donas de 60% da frota comercial (1.133 mil unidades) tendem a trabalhar hoje, o tempo todo, com uma margem de capacidade ociosa. E os transportadores autônomos, com um ou dois caminhões, a oscilar entre a ocupação plena e a completa ociosidade. Uns e outros na mais ferrenha e irritante competição pela pouca carga. Se, como é lícito conjecturar, nesta peculiar situação os autônomos têm caminhões mais velhos e menos econômicos, fica posto a nu um fator explicativo da especial combatividade demonstrada pelos pequenos caminhoneiros, quando da greve. São os ofertantes marginais, o elo mais fraco e vulnerável.

Mas voltando ao grau de subutilização, ele é mais sério do que parece. De um lado há a pulverização, 40% da oferta em mãos do pequeno transportador. De outra parte, a demanda pelo serviço em geral tem por natureza um formato acentuadamente inelástico, mais para vertical. No agronegócio, em particular, a capacidade de estocagem está, não na fazenda, mas nos centros de coleta, para onde a safra deve ser encaminhada, tão logo colhida. E nessas condições, não há redução de custo (seja de diesel ou do que for) que resolva, pois ela tende a repercutir muito mais no preço do que na quantidade. Ou seja, produz muito mais uma redução do frete do que um aumento da carga a transportar. Não é à toa que a mesma greve do ano passado, que pedia tetos para o preço do combustível, lutava com igual afinco por pisos para os fretes. E conseguiu! O que complicou de vez, botando o governo no ingrato papel de guardião do setor, encarregado de tutorear sua despesa e sua receita.

Não é surpresa que a Nova Matriz Econômica dos sábios de Dilma esteja implicada na barafunda. O setor de transporte rodoviário chegou a essa situação de hipertrofia, com o respaldo dos bancos oficiais, alimentados pelas burras abertas do Tesouro. Entre 2009 e 2016, segundo a mesma fonte, foram 770 mil unidades financiadas, a juro real fortemente negativo e a prazos de até oito anos. Isso, por sinal, bota uma componente que termina de dramatizar o quadro: ao aperto econômico decorrente da superoferta, acrescenta a pressão das letras a pagar. Se eu estou certo, a inadimplência do setor nesses financiamentos deve andar muito acima do normal, com todas as suas sequelas...

Diante da situação, não digo que o governo deva lavar as mãos e “entregar ao deus-mercado”. Muito ao contrário, digo que é social e moralmente imperioso que ele entre em ação. É dever seu. Só que lhe cumpre agir para desatar o nó e não para apertá-lo mais ainda. Vale dizer, tomar o sentido oposto do que se fez até aqui. Em vez de contribuir para o aumento da oferta, pensar em medidas de desmobilização. Coisas como programas de exportação de caminhões usados (há um ativo mercado internacional de máquinas e equipamentos de segunda mão) e de incentivo ao sucateamento de veículos acima de certa idade. E, paliativos de curto prazo, como refinanciamento de dívidas em atraso, bolsa-caminhoneiro para um certo número de carreteiros autônomos e por um determinado prazo etc. E apenas lanço algumas ideias, dentre muitas outras, para serem estudadas e adotadas, caso viáveis. Há que pensar o impensado. E é bom não esquecer que, a médio prazo, o mercado de fretes no Centro-Oeste vai mudar da água para o vinho, em desfavor do modal rodoviário. A longo prazo, nas duas décadas à frente, o crescimento da malha ferroviária, bem assim do transporte marítimo de cabotagem (estimulado pela privatização e modernização dos portos e terminais) imagino que irão retirar importância ao transporte rodoviário no sentido Norte-Saul. No cômputo geral, ele deverá cair do primeiro para o segundo ou terceiro posto, que é a posição normal, nas maiores economias.

Há um bocado de trabalho a fazer. E o presidente a vocalizar seu temor de uma nova greve. E sua simpatia pelos caminhoneiros... Nada contra as simpatias pessoais. Eu, antes de qualquer consideração econômica, confesso: sinto-me banhado do mesmo puro afeto, mistura de respeito e gratidão, sempre que cruzo com os caminhoneiros nas estradas, e assisto à procissão de sua longa paciência. Aliás, um dos meus hábitos de passageiro é descobrir pelas placas dos caminhões de que remotos rincões procedem eles. Para evocar o poema de Manuel Bandeira, o caminhoneiro é meu “marinheiros triste”, que eu gostaria de cobrir de todas as merecendências.

Mas um governo não pode transformar em premissa de política as simpatias particulares do presidente. Nem um país, ceder àquele tipo de temor. Logo, a primeira tarefa, aqui, seria enfrentar com energia a ameaça de greve. Pagar para ver. Por isso, a piscadela inicial foi péssima, caiu tão mal. Ainda mais que o presidente Bolsonaro tem condições excepcionalmente boas: o apoio de razoável parcela da população (muitas vezes maior do que os 5% do seu antecessor); e a sintonia fina com as polícias e as Forças Armadas, que lhe dão homens, inteligência e Estado Maior. E, ao agir como devia, ele estaria não só afastando a espada que ficou pendente, como contribuindo para levantar o moral da Nação, ferido pela greve do ano passado. No curso dela, o que se viu foram uns agentes da lei (polícia e Forças Armadas) com ar de pouco empenho nas ações de repressão ordenadas. Parecia que faziam cera... E a população, diretamente vitimada pela greve, a dar apoio prático e psicológico aos bloqueadores de rodovias. Espetáculo deprimente, esse, de um governo sem autoridade num país disposto à autoflagelação, a se mutilar para exprimir seu descontentamento...

Hoje, 17/04, vem a notícia de uma meia-volta atrás: a decisão por um aumento imediato, num percentual um pouco menor, e um kit de concessões, particularmente aos pequenos caminhoneiros. Mas, agora, vivemos uma ansiedade nova, a espera da reação do setor a esse e aos próximos capítulos. Deu ruim, virou folhetim. E é assim Bolsonaro: seu método parece ser primeiro errar, para depois acertar. O mesmo com a reforma da Previdência, para cuja aprovação o governo vem insistindo em experimentar todos os erros de condução possíveis. O resultado é que, mal começou, já está um mês atrasada.

Ah, sinto dizer, com tal modo de administrar a república nada se ganha. E se perde o bonde e a alegria. Contra ele lanço, aqui, meu protesto. E esclareço, não é gesto de oposição. Estou, como milhões de brasileiros de boa vontade, condenado a apoiar este governo: ele foi eleito limpa e convincentemente, e creio que propõe, no atacado, um rumo econômico sensato. Sobretudo, é um governo cujo fracasso não interessa a ninguém, seria o naufrágio do país, com todos a bordo. Mas boas intenções não bastam. É preciso boa visão. E tática, habilidade: conhecimento do métier, jeito na hora de fazer. Por enquanto, o governo está dando sua contribuição para o barulho que ensandece o país...

Daí essa forma nova de apoio: o apoio crítico, eu quase diria no ralho. Acho que é por isso que lembrei de antigamente. Da faina dos tropeiros, de botar gente quadrúpede, às vezes teimosa e opiniática, no caminho certo da entrega da carga. Pois, para fim parecido existe governo. Para, dentro da lei e da ordem, conduzir o povo a Sião. Usando das manhas suasórias todas. E da coerção legal contra os recalcitrantes e insubmissos. Mas e quando o próprio governo é recalcitrante e insubmisso ao bom senso? Eu ouço meu avô Petrola responder, arrastado, bem do meio do século passado:

—Aí é no manguá! No manguá..
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abril/2019

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