O Doido de Campina e a Atual Conjuntura ou Nadando contra a Correnteza
Texto de Luiz Alfredo Raposo, economista aposentado do BNDES.
Em Campina Grande, Paraíba, havia um doido muito popular que certa vez teria exclamado: em Campina, até para ser doido é preciso ter juízo. E dizendo isso, reconhecia que seu juízo viabilizava sua loucura... A anedota me volta agora, quando eu vejo esse clima jacobino instalado nas ruas do país. As pessoas aplaudindo um MPF e um Judiciário, que elas veem como patronos de medidas moralizadoras, em luta contra um Congresso podre, carcomido. E tanto eles como as entidades representativas da magistratura reagindo com azedume à ideia de alterações no texto das chamadas 10 Medidas. Em particular, repelindo como ofensa, retaliação toda norma nova de controle legal de suas atividades, vinda do Congresso. Ainda que norma em si razoável e até já reclamada.
De início eu via aí apenas truque de campanha. Algo para aumentar a pressão popular em favor das medidas e aprovar um maior número delas. Aquela alegação do perigo da má aplicação, por exemplo, me parecia jogada para a plateia. Do ponto de vista de conteúdo, nem um pouco convincente. Esse perigo, toda lei corre, por melhor que seja. E a lei é aplicada pelo Judiciário. Ora, só um juiz sem juízo daria a uma lei sensata uma interpretação insensata, contrária a sua própria corporação. E se a sentença do juiz singular contra um colega ou um procurador foi inspirada pela maldade, a vítima achará remédio no julgamento de um colegiado, ao qual ela sempre pode recorrer. O cuidado, aí, seria com tipificar com extremos de precisão as condutas ilícitas, sobretudo no caso dos delitos de magistrados. Há que preservar integralmente sua liberdade de interpretação e entendimento. O santo direito deles de errar de boa fé, que é a pedra de toque da liberdade democrática.
Mas veio a votação e a Câmara dos Deputados (por um placar expressivo) aprovou apenas em parte as propostas. E a reação dos patrocinadores me deixa alarmado. Ontem, 1/12, a equipe da Lava Jato, em entrevista coletiva, deu um verdadeiro ultimato aos poderes da República: um porta-voz ameaçou com a demissão coletiva da equipe, caso no final prevalecesse a decisão da Câmara. E eu pergunto: pode um servidor público recusar assim sem mais nem menos uma missão funcional? Por mais elevado que seja seu status, pode ele se dar o direito de desacatar os poderes do Estado: a Câmara dos Deputados, o Senado, a presidência da República? Mais grave: não vê essa gente, com a estima justamente angariada de que goza, que declarações como essa passam de todos os limites, soam como um convite à insurreição? Que nome tem a ética deles, que não mede as consequências dos atos?
Sim, agora fica claro para mim que as 10 Medidas viraram o mote para uma briga de foice entre Ministério Público e Judiciário, de um lado, e Legislativo de outro, pelo poder de legislar. A reação à contrariedade revelou que, mais do que propor novas providências anticorrupção, o que eles querem para si é isso. E que, no fundo, nas alterações introduzidas o vício original é terem partido de fonte errada. Ou seja, de quem, pela Constituição, detém a prerrogativa (direito e obrigação) de fazer leis! E que, de resto, é o poder maior, com direito de derrubar vetos presidenciais, de escolher os juízes do Supremo etc. Isso e as mobilizações da população, em particular da classe média, para grandes demonstrações de protesto nos próximos dias é que me levaram a falar em jacobinismo. Lembrei-me de espírito de revolução, o demo solto nas ruas. De Convenção. De Robespierre. Do Terror...
Eu sei que tudo brotou da repulsa da gente honesta à corrupção endêmica, repulsa da qual eu participo. Mas também sei que o excesso na reação é outro erro. Que combater o mal com o mal é uma má ideia. E é natural que resulte num mal ainda maior. Uma reação moderada, política, de parte dos “diretores do espetáculo”, partiria da visão do copo meio vazio como meio cheio. Daria um balanço e concluiria pelo êxito do movimento das 10 medidas. O movimento, com enorme apoio popular, fez o Congresso votar normas que não estavam em sua agenda. Quatro foram aceitas, entre elas a criminalização do caixa 2. E a Câmara, depois de muito barulho, terminou se rendendo à propositura original e excluiu do texto aprovado algo que estava fora dela: menção a anistia de ilícitos. Mais uma vitória! Anistia ao caixa dois era mesmo desnecessária! Um princípio basilar do Direito, inscrito na Constituição, veda punir como crime qualquer ato que, na época, não fosse tipificado como crime. E o caixa 2 era (muito erradamente, por sinal) mero crime eleitoral, da alçada da Justiça eleitoral. Anistia de malfeitos outros, como lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito etc.? Nem pensar!, trata-se de crimes de há muito caracterizados como tais. Puníveis pela lei penal. Depois da votação, a regra do bom teatro recomendaria, é certo, não festejar e até fingir um chorinho, para não dar ao Senado, para onde vai agora o projeto, a sensação de que a Câmara cedeu demais. Mas, em vez de ultimatos, sempre reafirmando, como se faz com o STF, o respeito às decisões do Legislativo.
Outro ponto que uma cabeça sensata observaria: a batalha ainda não está ganha nem perdida. A posição da Câmara pode ser alterada pelo Senado. E vetada no todo ou em parte pelo presidente da República. Mas, no fim, não há dúvida, uma porção valiosa das 10 Medidas vai sobrar. Não resolve, mas é um avanço. Meia vitória? Depois vem outras. E assim la nave và.
No mais, vamos e venhamos, algumas das medidas eram de fato extravagantes. “Teste de integridade”, essa espécie de arapuca armada para pegar servidores corruptos? Que que é isso?! Validade de gravações não autorizadas? Seria uma estranha revolução no Direito, estabelecendo a legalidade do ilegal... Prêmio material para “reportante”, “delator do bem”, de malfeito que viu sendo praticado?! Santo Deus, qual o lucro para uma sociedade democrática desse convite ao policialesco, desse avatar de macarthismo? Avanço, aqui, foi recusar semelhantes disparates.
Enfim, quanto à ideia subterrânea de um Congresso-bandido, formado quase só por recebedores de propina de empreiteiras, direi apenas umas duas ou três coisas: uma, que ela não é, em absoluto, invenção de juízes nem de procuradores. Mas não é possível que eles ignorem que é uma ideia-força por detrás do apoio que eles vem recebendo. Ora, mais do que exagero, trata-se de exploração grosseira do que Marx apelidou de beataria pequeno-burguesa peculiar a certa classe média. A ideia de ver em tudo o pecaminoso. De resto, essa concepção deixa inexplicado como um Congresso tão salafrário, composto por uma súcia da pior espécie (que, aliás, cada um de nós contribuiu para reunir), foi capaz, este ano, de algumas ações tão virtuosas. Afastou uma presidente e equipe de incompetência agressiva, onerosíssima para o país (e só se viu como o Congresso discursa mal. Discursou mal, mas agiu bem!). Aprovou o fim da obrigatoriedade de a Petrobrás participar do investimento em cada poço aberto na área do pré-sal, que foi, junto com o congelamento dos preços, o principal causador de sua monumental débacle. Aprovou uma lei de repatriação de capitais brasileiros no exterior, que trouxe 50 bilhões de reais extras para o caixa do Tesouro, num ano particularmente angustioso. Aprovou por três vezes a PEC do Teto (falta uma quarta e última, prevista para meados deste dezembro). E a PEC é a pedra angular da recuperação econômica do país. A gente anota esses fatos e dá vontade de imitar o Marco Antônio de Shakespeare:
E eu pensei que o Mal fosse feito de pano mais barato...
Não sei o que estaria imaginando, numa hora dessas, o doido de Campina. Talvez achasse tudo uma loucura. Talvez comentasse, a título de conselho: até para ser honesto é preciso ter juízo. Pois aceito o conselho e o repasso a meus concidadãos: juízo, pessoal, juízo!
Recife, dezembro/2016
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