Artigo da professora de Direito Penal da USP, doutora Janaina Conceição Paschoal, publicado hoje, dia 16/6/2013, no blog de Reinaldo Azevedo.
Janaina
Conceição Paschoal é uma jovem professora de Direito Penal da USP. Além
do rigor técnico, da dedicação ao direito e à academia, exibe uma outra
virtude raríssima no seu meio intelectual e cada vez mais rara no
Brasil: a coragem de dizer “não” quando discorda, pouca importando as
vagas dominantes de opinião.
Ela
escreve para o blog, com exclusividade, um artigo que lê, ou relê, o
espírito do tempo. Quem são esses “jovens” que estão nas ruas e
acreditam que podem impor aos outros a sua vontade, sem atentar para os
limites das leis, do estado democrático de direito?
A
professora chega à conclusão de que a “geração do Construtivismo” se
encontrou, finalmente, com a perigosa noção do “território livre”. E
então tudo passa a ser permitido. O título que vai acima é meu, pegando
carona no livro de Lobão, que também ousou dizer “não”, a saber:
“Manifesto do Nada na Terra do Nunca”.
Leiam o iluminado artigo de Janaina.
REINALDO AZEVEDO
Desde que
ingressei na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1992,
intriga-me ouvir que a USP e, por conseguinte, o Largo, constitui
território livre. Sempre tentei compreender o que essa liberdade
significaria.
Ao compor a
diretoria do Centro Acadêmico “XI de Agosto”, já comecei a questionar
esse tal território livre, buscando modificar o trote, muitas vezes,
humilhante e até perigoso, como ocorria nas Carruagens de Fogo
(“brincadeira” em que o calouro era obrigado a beber continuamente e a
correr no chão molhado, ao som da música clássica de idêntico nome).
Também me
voltei contra o “Pendura”. Eu, que nunca fui comunista, nem lulista nem
petista, confesso, não me conformava com o fato de jovens,
majoritariamente de classe média, se sentirem no direito de entrar em um
restaurante e dizer ao dono, com muita naturalidade, que simplesmente
não iriam pagar. E ai da autoridade que lhes dissesse o contrário!
Cheguei a participar do tal “Pendura”, mas, imediatamente, senti que
aquilo não era direito.
Em 1997,
quando iniciei o doutoramento e comecei a auxiliar os professores na
graduação, já conversava com os alunos sobre o sentido da “Peruada”. Por
que, afinal, eles não podiam fazer seu Carnaval sem beber até cair? À
resposta pronta de que se tratava de tradição, instintivamente, passei a
responder que tradição também se modifica. Até hoje, meus alunos não
acreditam que nunca participei da “Peruada” e, às vezes, me “acusam” de
ser evangélica.
Já
professora concursada, nas últimas aulas do curso, normalmente, dedico
um tempo perguntando aos alunos o que eles querem para as suas vidas.
Nessa era dos textos curtos, das mensagens cifradas, da informação
fácil, é muito difícil conseguir que eles leiam um artigo de dez
páginas, em português.
Há algumas
semanas, quando uma de minhas turmas não leu um projeto de lei de três
páginas, eu os avisei sobre o perigo de serem manipulados, pois quem não
lê, quem não conhece, acredita apenas no mensageiro.
Costumo
dizer aos meus alunos que o estudante que realmente crê estar em um
território livre será o promotor que acredita que pode denunciar o outro
por dirigir embriagado, mas ele próprio está autorizado a beber e
baixar um aplicativo da internet para saber onde estão os bloqueios
policiais. Esse aluno será o juiz que acredita que ganha pouco e tem
direito de viajar para o Nordeste sob o patrocínio de empresas cujas
causas julga, e assim por diante.
Quando
alguns alunos invadiram e depredaram a Reitoria, e grande parte dos
professores achou natural aquele espetáculo de liberdade de expressão,
eu escrevi para a Folha de S. Paulo o texto intitulado “Quem é
elitista”, apontando que esse tipo de comportamento é decorrente da
certeza de que, realmente, a universidade constitui um território livre e
que apenas os pobres, que precisam trabalhar e estudar à noite e que
têm os seus salários descontados para pagar os estudos do pessoal da
USP, podem ser abordados por estarem fumando maconha na esquina.
É
interessante. Ao mesmo tempo em que os intelectuais denunciam que o
Direito Penal serve apenas para punir pobre, contraditoriamente, aceitam
que só pobres sejam penalizados. A lei não diz respeito a eles
próprios. Coincidência ou não, os atuais protestos se iniciaram após a
rejeição da denúncia referente à invasão da Reitoria da USP.
Pois bem,
quando começaram as manifestações, e os discursos dos líderes surgiram,
imediatamente, identifiquei o dogma do território livre.
Foram
muitas as notícias de violências e abusos, e eu tive relatos de pessoas
que estavam, por exemplo, no Shopping Paulista e foram surpreendidas por
rapazes encapuzados, que exigiam o fechamento das lojas, sob o brado de
que estavam “tocando o terror”.
Chamou
minha atenção o fato de uma das pessoas que fizeram tais relatos ter
dito que logo percebeu que não seriam criminosos, pois eram pessoas bem
vestidas. Para alguém que estuda Direito Penal, há anos, esse tipo de
frase dói, pois é a confirmação de que a sociedade não quer mesmo punir
atos, mas estereótipos.
Se a
garotada da periferia tivesse tomado a Paulista, ninguém acharia exagero
a Polícia Militar tomar providências. Percebe-se que mesmo quem estava
indignado contemporizava, pois, afinal, amanhã, pode ser seu filho. De
novo, o dogma do território livre.
Na véspera
do protesto em que a Polícia Militar reagiu, conversei com uma senhora,
que julgo esclarecida, e fiquei surpresa com seu encantamento frente ao
brilho do neto, que aderira às manifestações a fim de lutar pelos mais
necessitados.
Ontem,
durante uma reunião com amigos, quando todos cobravam apoio ao
movimento, tomei a liberdade de dizer que não acredito ser esse o melhor
caminho.
Apesar de
destacar estar convencida de que houve excessos da polícia, sobretudo no
caso do tiro mirado no olho da jovem jornalista, situação que
caracteriza lesão corporal dolosa, de natureza grave, ponderei que
devemos ser cautelosos, pois nem toda prisão foi descabida, e os
manifestantes podem estar servindo de massa de manobra.
A reação
dos colegas foi surpreendente. Alguns, lembrando a importância dos
jovens em todas as mudanças sociais, destacando sua própria luta contra a
ditadura, chegaram a se emocionar, falando de seus próprios filhos como
grandes políticos, verdadeiros heróis, pessoas esclarecidas, apesar dos
vinte e poucos anos.
Sendo uma
criatura insuportavelmente crítica, sobretudo comigo, passei a noite
pensando se não teria sido injusta com os manifestantes e insensível com
os colegas. Afinal, se todos estão tocados com a beleza deste momento,
parece razoável que os pais estejam orgulhosos da lucidez de suas crias.
Mas essa
experiência, sofrida, de magoar os colegas, aos quais, nesta
oportunidade, peço desculpas, foi muito importante para eu poder ver
algo que ainda não estava claro.
As
gerações passadas também tinham esse sentimento arraigado de território
livre, de que a lei vale apenas para os outros e não para os iluminados
da USP.
No entanto, no passado, havia o contraponto de pais que impunham
limites; pais que diziam mais NÃOs do que SIMs; pais que ensinavam os
deveres antes de falar sobre os direitos.
O fenômeno que nos toma de assalto é preocupante. Une-se o dogma do território livre com a geração “construtivismo”.
Chegam à
idade adulta os garotos que nunca ouviram um NÃO, os garotos que sempre
puderam se expressar, ainda que agredindo o coleguinha, ou chutando a
perna de um adulto em uma loja.
Chegam à
idade adulta os garotos cujos pais vão à escola questionar por quais
motivos os professores não valorizam a genialidade de seus filhos. Pais
que realmente acreditam que seus filhos, aos vinte anos, são verdadeiras
sumidades e têm futuro por possuírem vários seguidores no Twitter.
Nossos
iluminados já avisaram que, se a tarifa de ônibus não baixar, vão
continuar a parar São Paulo. Quem vai lhes dizer não? A Polícia não
pode, nem quando estão queimando carros e constrangendo pessoas. Os
professores, salvo raras exceções, incentivam, em um saudosismo
irresponsável, para dizer o mínimo. E os pais, entorpecidos pela
necessidade de constatar o sucesso da educação conferida, acham tudo
muito lindo e vão às ruas acompanhar a prole, pedindo algo indefinido e
impalpável.
Nestes
tempos em que falar em Deus é crime, peço a Deus que eu esteja errada e
que, realmente, não tenha alcance para perceber a importância e a beleza
deste momento histórico.
Há duas
décadas, quando o presidente do Centro Acadêmico “XI de Agosto” me
destacou para falar algumas palavrar para recepcionar Lindbergh Farias,
pouco antes de sairmos em passeata pela derrubada de Collor, eu peguei o
microfone e disse: “Nós vamos a essa passeata porque a causa é justa,
mas sua cara bonita não me engana”. Por pouco não fui destituída do
cargo. Creio que meus colegas de chapa nunca me perdoaram.
Há alguns
anos, durante uma cerimônia em que todos reverenciavam o então ministro
da justiça, Márcio Tomaz Bastos, eu o questionei sobre a quebra do
sigilo do caseiro Francenildo. Cortaram-me a palavra e, até hoje, há
quem não me cumprimente direito pela absurda falta de sensibilidade e
educação.
A maior parte dessas pessoas apoia e estimula os atuais protestos e propala que o Mensalão não passou de uma ficção.
Tenho
enviado comentários para a Imprensa, dizendo que os grupos que estão
estimulando esses jovens a irem para as ruas estão torcendo muito para
aparecer um cadáver em São Paulo, pois é só disso que precisam para
tentar tomar também o estado.
Eu, por
amar todos os meus alunos, os que concordam e os que não concordam
comigo, estou bastante preocupada com essas forças ocultas, que
manipulam nossos jovens marxistas de twitter.
Quando
digo isso, costumo ouvir, mais uma vez, que estou fora da realidade, que
é o PT que está na berlinda. Afinal, os protestos não estão apenas em
São Paulo, estão no país inteiro.
É verdade,
mas tem alguém, que dialoga muito bem com as massas, que precisa de um
argumento palatável para voltar em 2014. E, segundo consta, funcionários
da Presidência da República, subordinados a Gilberto Carvalho, foram
organizadores e fomentadores do protesto. Não é a oposição que Dilma
deve temer. A oposição simplesmente não existe. Apenas as cobras que
cria no próprio Palácio, ou das quais não pode se livrar, é que, no
futuro próximo, têm condições de picá-la.
Algumas
pessoas me perguntam como posso ser liberal em alguns aspectos e
conservadora em outros. Em regra, quando recebo esse tipo de
questionamento, procuro compreender o que o interlocutor entende por
“conservador” e por “liberal”.
Não sei
como etiquetar, mas acredito que todo educador, seja o de casa, seja o
da escola, deve mostrar ao pupilo que existem direitos e existem
deveres. E que ninguém pode tudo. Talvez o que esteja prejudicando o
país seja justamente esse sentimento generalizado de território livre.
Os manifestantes de hoje podem ser os políticos de amanhã. Se não lhes
dissermos “não” agora, como impor limites no futuro?
Talvez eu
seja apenas uma canceriana pouco romântica. Talvez esteja velha demais
para perceber a grandeza dessa novidade que invade o país. Tomara!
Mas esses
21 de USP e quase 15 de docência me permitem afirmar que são jovens
muito promissores, mas ainda são garotos de vinte anos, que não estão
acostumados a ouvir um “não”.
Se não
posso pedir razoabilidade aos pais e aos professores, peço,
encarecidamente, à imprensa que tenha cautela ao estimulá-los, pois não
temos instrumentos para fazê-los parar. Teremos que, pacientemente,
aguardar que eles se cansem do que pode ser uma grande brincadeira.
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