O Sonho

Jornal O Estado do Maranhão

           Acaba de ser instalada a Comissão da Verdade. Sua missão, estabelecida pela Lei no 12.528, no art. 1º é: “ [...] examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.” Diz mais a Lei, no artigo 6º: “Observadas as disposições da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Comissão Nacional da Verdade poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos [...]”. A Lei no 6.683 é a da Anistia, do já longínquo ano de 1979, mas, evidente, em vigor como se sua promulgação tivesse ocorrido ontem.
          Nos dois artigos acima mencionados, assim como no restante do texto legal, nada há, ex-plicita ou implicitamente – nem pela melhor hermenêutica do companheiro mais inovador em matéria jurídica –, que possa ser usado como base para a distinção entre, de um lado, crimes de um grupo de cidadãos moralmente superiores (os delitos destes seriam os crimes bons); e de outro lado, os crimes viciosos, praticados por agentes do Estado, pessoas moralmente inferiores.
          Mas, tudo indica, essa distinção é feita por membros da própria Comissão. Um deles, Paulo Sérgio Pinheiro: “O único lado é o das vítimas, o lado das pessoas que sofreram violações de direitos humanos. Onde houver registro de vítimas de violações praticadas por agentes do Estado a comissão irá atuar. Nenhuma comissão da verdade teve ou tem essa bobagem de dois lados, de representantes dos perpetradores dos crimes e das vítimas. Isso não existe.”
          Data vênia os méritos intelectuais do diplomata Paulo Sérgio, ocorre aí uma contradição lógica. Se existe apenas um lado, então não houve “guerra suja” nenhuma, por falta de oponentes. Como guerrear contra adversários inexistentes? Se se parte de pressuposto como esse, então não se irá esclarecer mais coisa nenhuma, pois tudo já está apurado.
          Outro membro, Rosa Maria da Cunha, advogada de Dilma Rousseff, disse que o objetivo da Comissão é investigar somente violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado contra os opositores e supostos opositores do regime ditatorial de 1964. Ora, lemos acima a letra da lei e lá não encontramos nada disso. Felizmente há na Comissão gente que discorda de Rosa e Sérgio.
          Agora, aos fatos. Os crimes da ditadura militar são muito bem conhecidos e não necessitam de exemplificação. Foram prisões arbitrárias, assassinatos em prisões especializados em torturas físicas e psicológicas, humilhações, intimidações de cidadãos envolvidos ou não nas chamadas atividades subversivas. Em contraposição, de parte dos que pegaram em armas houve o quê? O oferecimento de flores? Vejamos. Mário Kozel Filho, na ocasião com 18 anos de idade, morreu espedaçado como resultado de um carro bomba jogado por um grupo de organizações de esquerda contra um quartel do Exército onde ele servia. Qual o crime dele? Vestir uma farda em cumprimento das leis do país. Ou isso foi apenas um pequeno dano colateral dos combates? E o capitão Lamarca, que esmagou o crânio de um tenente da Polícia Militar de São Paulo, certamente perigoso inimigo do povo? E os justiçamentos sumários de companheiros de guerrilha por tribunais revolucionários sem oportunidade de defesa? As famílias de Kozel, a do tenente e as de outras vítimas de grupos armados não têm direito ao reconhecimento de que contra esses homens foram cometidos crimes bárbaros? Não serão identificados seus autores? Os assassinados não têm famílias, só os outros?
          Espalha-se por aí a ideia de que a guerrilha lutava pela democracia. Quem tem informações sobre grupos como Colina, VPR e VAR-Palmares sabe ser tal afirmação mentirosa. De verdade, queriam derrubar pela força uma ditadura para, também à força, implantar outra, ao gosto deles. Eram heróis da liberdade de oprimir a “burguesia” e com ela a sociedade. Queriam replicar aqui os modelos de retidão moral stalinistas, maoístas, pol-potistas, castristas e assemelhados. Era esse o sonho.

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