25 de maio de 2003

Com meus botões

Jornal O Estado do Maranhão 
Naquele tempo, entre o fim dos anos cinqüenta e começo dos sessenta, carregávamos, nós, garotos de classe média do Monte Castelo, nos bolsos dos calções, dentro de pequenos sacos de pano macio, cuidadosamente enlaçados por cordões na extremidade superior, pequenas caixas metálicas redondas, antes embalagens das Pastilhas Valda, depois guardiãs dos nossos preciosos times de botão, a protegê-los de olhares cobiçosos. Uso nobre, comparado com o original, de mero depósito de remédio para alívio de uma coceirinha qualquer na garganta.
Com o pensamento no conforto dos craques de plástico, forrávamos com flanela, verde ou vermelha, o interior do recipiente, evitando, com esse cuidado, arranhões em suas brilhosas superfícies e a diminuição de seu valor de troca. Aliás, era incomum vendermos os mais valorizados, mas não trocá-los, o que acontecia com alguma freqüência, embora eu mesmo, como com os livros, ficasse indignado com a sugestão de desfazer-me dos meus.
Os jogadores tinham origens caseiras, uns; mais profissionais, outros. Mas, nós, donos e técnicos dos times, chamados pelos nomes das equipes do Sul do país, não tínhamos preconceito a esse respeito. Avaliávamos unicamente a eficiência e a beleza de cada peça. Elas podiam vir dos punhos de um terno, de uma camisa ou do cós da calça de nossos pais, de um vestido de nossas mães. Contudo, quem quisesse parecer um profissional de verdade, olhar os adversários com um ar superior, falar como um especialista, tinha de ir à Casa Waquim, no centro, na praça João Lisboa, no início da rua Afonso Pena, a fim de adquirir material de primeira. Se a memória não me trai, como costuma fazer com freqüência, arrisco dizer que era o único lugar na cidade onde se podiam encontrar aqueles botões. A loja era um verdadeiro celeiro de craques, para usar a exausta expressão dos cronistas de futebol de hoje.
Íamos, então, do bairro considerado distante, até lá, a fim de ver as novidades, nos vagarosos e incertos ônibus que, andando no mesmo ritmo de uma entorpecida São Luís, nos deixavam ali por perto, com pouco dinheiro no bolso e muitos planos na cabeça para os próximos jogos. Quem sabe, entre os novos jogadores, um novo astro nasceria! Isso, no entanto, dependia muito da preparação que devíamos dar a eles.
Primeiro, era passar uma lixa fina na superfície inferior do botão, de tal maneira que ela se tornasse um círculo perfeito, deslizante, com a espessura uniforme nas bordas ao longo de toda a circunferência da peça. Depois, se devia aplicar cera de vela comum, das que se usavam naquela época de freqüentes faltas de eletricidade. (Será diferente hoje?). Obtinha-se, em seguida, o brilho perfeito – brilho de cristal – com uma boa flanela ou com sucessivas esfregadelas do botão em nossas próprias roupas.
Havia diversos tipos à disposição dos compradores. Os de maior prestígio naquele tempo eram o cocó paulista e o gaúcho. Eles lembravam mesmo um cocó – aquele penteado formado por cabelos enrolados em espiral, presos no alto da cabeça pelas senhoras de antigamente –, com a parte central da face superior projetando-se para o alto em formato de um pequeno sino. Só não sei a razão do “paulista” e do “gaúcho”.
Por fim, os campeonatos deveriam ser organizados, na maioria das vezes na casa de José Aniesse Haickel, o estádio de nossos confrontos. Lá, o gramado, quer dizer a mesa de jogo, havia sido preparada de antemão por ele. A partir daí, porém, tudo se complicava. Sem uma “autoridade” superior, uma federação, uma associação, qualquer coisa, os certames não terminavam. Os juízes, um de nós, não eram, vamos dizer, totalmente imparciais. Davam origem a intermináveis questionamentos e discussões. Conduzíamos, por causa disso, cuidadosamente, os craques, um a um, a suas concentrações dentro das latas e ficávamos à espera da próxima tentativa de organizar a competição.
Eu, de minha parte, dizia, já em casa, com meus botões: – Da próxima vez, só entro em campo com juiz de fora.

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