20 de janeiro de 2008

José Cursino

Jornal O Estado do Maranhão, 20/1/2008

Um dia um rapaz sonhador tomou a decisão secreta de ir para a cidade grande. Nascido em Cajapió, na Baixada Maranhense, sempre fora fascinado com os belos campos da região, com a praia de Itapéua, com os pássaros que por lá passeavam – garças, maçaricos, jaçanãs e marrecos presentes em minha memória através das histórias contadas por minha avó –, e com a poesia da terra. Terá lido, imagino, estes versos, dedicados por seu tio, o romancista, poeta, jornalista e artista plástico Inácio Raposo, ao irmão, José Cursino da Silva Raposo: “Lembras-te? O campo já brotava em flores, / Passavam pelo céu, cantando, as aves; / Era S. Bento um reflorir de amores, / Mas de amores suaves”.
Os livros, apesar de toda aquela beleza em volta, eram seu grande amor. Lia os de seu pai, Luís, trazidos da capital em igarités, ou o rapaz os pedia emprestados aos poucos amigos e conhecidos que os tinham. Deitava em uma rede alva, na varanda da casa da pequena fazenda perto da praia, e passava longe dali o dia inteiro – durante as férias da escola primária – ou a tarde inteira – ao longo do período escolar – em outro mundo, vivendo outra vida, no convívio de heróis e vilões, observando o drama e a comédia, a baixeza e a nobreza da alma humana, junto ao irmão Haroldo, que observava curioso o irmão lendo sem parar, enquanto dividiam em harmonia o pequeno espaço da rede. Era, deve ter concluído, necessário ler mais ainda, num lugar de grandes escritores, aprender tudo, se possível. Queria vencer, como o tio Inácio. Mandado por seus pais a São Luís, com o fim de cursar o antigo ginásio, acompanhado da irmã Maria e do irmão Alvacir, logo procurou seu padrinho, dr. Pedro Oliveira, prefeito de São Luís em 1933, (estamos em 1936). Convenceu-o a lhe dar algum dinheiro, suficiente apenas para ir até Recife. Lá, embarcou clandestinamente num navio, rumo ao Rio de Janeiro. Mas, a cidade era grande. Onde andaria o tio Inácio naquela imensidão?
A mãe, Marcelina, chorou.Teria o pai, que nunca mais o veria, chorado também? Tendo este notícia da presença do rapaz na capital federal, pediu a Magalhães de Almeida, governador do Maranhão entre 1926 e 1930, que o localizasse e o encaminhasse ao irmão de Luís, Inácio, em Vassouras. Aí o rapaz se iniciou no jornalismo com a ajuda do tio e não parou mais de crescer. Decorridos alguns anos, voltou ao Rio de Janeiro e, além de continuar no jornalismo nos grandes jornais do Rio, tornou-se um intelectual respeitado, autoridade brasileira na obra de Graça Aranha, especialista em Clarice Lispector, sobre quem tem excelente ensaio inédito, subsecretário de Cultura do Rio, diretor do Museu Histórico Nacional e do Conservatório Nacional de Teatro.
Passaram-se quase vinte anos até ele, José Cursino dos Santos Raposo, meu tio que morreu no último dia 14, ter contato com alguém de sua família, quando seu irmão Saul foi em busca de trabalho no Rio de Janeiro, onde, alguns anos depois, um outro irmão, aquele que partilhava com ele a rede, perto de trinta anos depois de se terem visto pela última vez, se encontrou com ele. Finalmente, após rever sua irmã Maria, minha mãe, ainda no Rio, veio ao Maranhão, pouco mais de trinta anos após sua partida inesperada, como viria outras vezes. Manifestou várias vezes o desejo de voltar a Cajapió, mas nunca o fez. Temeria a emoção da volta à terra de sua infância, aos belos campos da Baixada?
Ele ficou no meu imaginário na infância e adolescência. Era a figura distante de quem ouvia falar, que ousara se libertar de seu meio acanhado e vencera no maior centro cultural do país na época. Embora eu não conhecesse então nada de sua produção, passou a ser o intelectual a quem eu olhava com um fascínio nunca diminuído, como ele olhava Inácio.
Queria vencer e venceu.

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