Desordem cultural

Jornal O Estado do Maranhão

          Li neste jornal o artigo Desordem urbana e criminalidade, do promotor de justiça Cláudio Cabral Marques. Ele apresenta ao público temas de grande importância e o faz com a experiência de quem vem dando reconhecida contribuição a sua discussão que, no entanto, poderá ter seu escopo ampliado se nela incluirmos fatores culturais como uma das causas da desordem civil em que vivemos nesta cidade.
           Tomemos o exemplo de Brasília. Quando eu morava naquela cidade, a utilização da faixa de pedestres era tão perigosa quanto o é hoje em São Luís e ainda será por muito tempo. Mais tarde, quando voltei a passeio, depois de poucos anos de ausência, pude ver os veículos da capital do país a pararem civilizadamente nas faixas, dando prioridade aos pedestres. O segredo da mudança? Campanha de esclarecimentos à população numa primeira fase combinada na segunda com intensa repressão aos infratores. Quem acredita que o ser humano é como o selvagem de Rousseau, bom por natureza e apenas corrompido pela civilização, apoiará, na resolução do problema, somente a campanha da fase inicial. Quem tem uma visão mais próxima de Hobbes (“o homem é o lobo do homem”) acreditará na força da repressão, pois, dirá, as pessoas são egoístas e pensam apenas em seus próprios interesses. Na prática, porém, o resultado exitoso dependeu de uma mistura das duas visões, nem sempre formuladas conscientemente, neste e em outros casos, na mente das próprias autoridades.
          O impossível de alcançar – respeito à faixa dos pedestres– tornou-se possível, como se fora uma segunda natureza dos motoristas de Brasília. Passou a fazer parte da cultura local.
          O dr. Cláudio Cabral foi feliz ao apontar perigo muitas vezes negligenciado: as infrações administrativas que sequer estão no âmbito do direito penal “acabam por evoluir para infrações penais, pois não sendo fiscalizadas, as pessoas encontram caminho fértil para a prática de delitos [...].” Mais adiante: “Há muito [...] Émile Durkheim chamava a atenção para o problema da anomia, que nada mais é que o absoluto desrespeito/descumprimento das normas estatuídas para o controle social cuja consequência é a completa erosão do necessário consenso mínimo para a vida em sociedade.”
          Eis o ponto crucial. A vida das sociedades civilizadas é regulada por leis. Se sua execução não é fiscalizada, se elas são desrespeitadas, se a anomia prevalece então vivemos no tempo do homem das cavernas.
          O seu descumprimento não tem relação alguma de causa e efeito com nível de renda ou posição social, como se pode inferir do exemplo de Brasília. O caso contrastante da poluição sonora generalizada em São Luís, com desprezo evidente da lei pelos infratores, me ocorre de imediato. A muitos, poderá parecer quase impossível mudar a prática, cuja ilegalidade nasce não da falta de equipamentos urbanos, mas da cultura do desrespeito às normas. Contudo, como vimos, esclarecimentos pelo poder público aos cidadãos e uma boa dose de repressão podem fazer a mágica.
          Há, ainda, um traço ainda mais deletério, também de ordem cultural. É a ideia, primeiro, de que uma vez feitos, investimentos em negócios geradores de poluição sonora não obrigam os investidores ao cumprimento da legislação porque esta contém exigências com o potencial negativo de afetar seus lucros, como se antes de investir não conhecessem as regras do jogo; segundo, que os cidadãos com baixo nível de renda quando desobedecem as leis, no caso da ocupação de espaços públicos, por exemplo, estão “apenas ganhando a vida honestamente”, como se a lei fosse aplicável a alguns cidadãos, mas não a outros. Cria-se, desse modo, uma legislação esquizofrênica, pois ela é e não é, pega e não pega. Gera-se até preconceito contra os não pobres. Chegará um dia quando estes, qual personagens de Nelson Rodrigues, andarão por aí, olhares rútilos e baba nas gravatas, repetindo obsessivamente: – Mil desculpas por não sermos pobres. Mas, um dia seremos. Perdão. Perdão.
A desordem é urbana, mas igualmente cultural. Está na hora de dar fim, permitam-me a expressão, a essa esculhambação.

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