Maria Celeste

Jornal O Estado do Maranhão
 O ano de 1954 foi de grande agitação política no Brasil do que resultou o suicídio, em agosto, do presidente e ex-ditador Getúlio Vargas. A tragédia de Getúlio foi precedida, em São Luís, por uma de outro tipo que mobilizou a cidade intensamente. Ela se tornou inesquecível para o garoto de seis anos de idade que eu era. Foi o incêndio e naufrágio do navio Maria Celeste, a pouca distância do cais da Sagração, no porto de São Luís.
Em verdade, não cheguei a ver o incêndio. Não me lembro mesmo se cheguei a pedir para ir vê-lo. Sei que não fui. O que vi, sim, lá do Monte Castelo, olhando na direção do centro da cidade, foi a fumaça preta subindo espessa durante três dias. A agitação, as conversas dos adultos, as notícias das rádios (não havia televisão) e o que eu já podia captar dos textos e fotos dos jornais, tudo me fazia intuir que aquele era um acontecimento extraordinário.
As lendas que iam aparecendo rapidamente, as quais eu guardo até hoje, falavam de homens que voavam em tonéis de gasolina que explodiam a toda hora. De marinheiros e estivadores que saltavam do navio, fugindo do fogo, somente para se achar em meio às chamas que incendiavam o mar. De salvamentos heróicos, de valentia, de solidariedade. De enterros, em pequenas caixas de papelão, dos corpos encolhidos pelo fogo. De tristeza, de desespero, de drama, de morte, de tudo.
Agora, chega-me às mãos uma versão condensada do inquérito feito pela Marinha. Esse resumo foi-me dado pelo mergulhador William Thomas, em atendimento a pedido que eu lhe havia feito. É que em conversa anterior que tive com o contista Lucas Baldez Filho ele me havia falado sobre as pesquisas que estava fazendo para um romance ambientado na São Luís de então. Eu tentei ajudá-lo.
Faço um resumo do resumo. O Maria Celeste era um cargueiro a vapor de 632 toneladas e havia sido usado como torpedeiro durante a Segunda Guerra Mundial pela marinha americana. Seu comandante era o capitão Ornilo da Costa Monteiro que fez escala em Recife, vindo de Santos. Estava carregado com três mil tambores de gasolina de aviação, com mil de querosene, com pneus e doces em conserva.
Às nove e meia da manhã de 16 de março uma faísca atingiu, no convés, um local com gasolina derramada, provocando o incêndio que rapidamente se espalhou. Dos 38 estivadores a bordo morreram 5 e dos 18 tripulantes, 11, num total de 16 mortos, havendo mais 14 feridos, entre eles o comandante. Os enterros foram feitos no dia 17.
Quando o fogo atingiu o tanque de combustível do navio, no dia 18, ocorreu uma explosão que foi ouvida em quase toda a cidade. O navio afundou a seguir. Cumpriu seu destino de escapar da guerra para encontrar o desastre em São Luís. Durante mais de trinta anos, seu mastro principal era visto, acima da linha da água, no canal do antigo porto próximo à Beiramar. Fez parte da paisagem da cidade, até que foi retirado de lá nos anos oitenta.
Do que eu ouvia em 1954 e do que leio agora, fica-me a sensação de que, das duas versões — a lendária e a que chamamos histórica —, a melhor é a lendária. A outra transforma a tragédia numa coisa banal, comum, igual a muitas outras que se repetiram muitas vezes, antes e depois. Sua pretensa exatidão apaga a nobreza da luta contra a morte em momentos extremos como aqueles. Mas não a lenda. Esta universaliza, afirma a ausência de limites para o homem, descobre o épico, humaniza a dor, mostra que o aniquilamento físico é uma derrota apenas aparente, em face do espírito de luta que permanece como exemplo, como permaneceu na minha memória.
Mas, pode ser que a separação que fazemos entre história e lenda seja ilusória. É possível que história seja a mesma coisa que lenda: uma narrativa de ficção verossímil, idealizada, mas não exata, realista. O que a colocaria mais próxima da arte do que da ciência. A história equivocada seria, então, a que pretende uma fidelidade impossível aos fatos. Como nos inquéritos.

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