O Intelectual Ratzinger
Jornal O Estado do Maranhão
Da mesma forma que no mundo real, existe no virtual a boataria delirante, propagada por uma boca-a-boca eletrônico, que já tem até nome, buzz. São paranóias, teorias conspiratórias, meias verdades (que afinal, não deixam de ser mentira inteira somada a meia mentira), preconceitos e muita coisa mais, a circular velozmente na internet.
Veja o caso do papa Bento XVI. Há sobre ele todo tipo de distorção. Chegaram a acusá-lo de adepto do nazismo, por ter feito parte da juventude hitlerista. Não mencionam, todavia, a obrigatoriedade de os jovens alemães servirem a essa organização nem a atitude do jovem Ratzinger, de ter desertado do exército de Hitler. Menos grosseira, mas, não menos deturpada é a tentativa de nele colocarem o selo de grande inquisidor, obscurantista inflexível, incapaz de perceber a complexidade do mundo moderno e de dialogar com visões do mundo divergentes da dele.
No entanto, não é que o investigador-mor se arrisca a debates? Em janeiro de 2004, na Academia Católica da Baviera, ele discutiu “as bases pré-políticas e morais do Estado democrático”. Sabem com quem? Com o “herege” alemão Jürgen Habermas, um dos mais importantes filósofos da atualidade, da segunda geração da Escola de Frankfurt. Este é o nome pelo qual se tornou conhecido o Instituto de Pesquisa Social, fundado em 1923, que tinha como principal característica a tentativa de conciliar a teoria marxista com a realidade, tendo para isso desenvolvido a chamada Teoria Crítica da sociedade, de caráter interdisciplinar. A esse grupo pertenceram, entre outros, Adorno, Horkheimer e Walter Benjamin.
Como contraponto ao texto de Habermas, Ratzinger apresentou o seu próprio, bastante sofisticado intelectualmente, ambos publicados em 24 de abril na Folha de S. Paulo, no caderno “Mais”. Da leitura mais atenta do segundo, extraio as seguintes observações de leigo.
Ratzinger demonstra compreensão clara do mundo moderno ao abordar temas como: éticas e culturas; interesse comum; a natureza do poder; tutela da razão; tutela da religião; interculturalidade; duplos limites [patologias da razão e da religião]. Em nenhuma passagem ele usa argumentos de natureza teológica.
Num trecho, que se relaciona com as discussões atuais sobre a clonagem de seres humanos, ele observa que, hoje, o homem é capaz de fabricar homens em laboratório o que muda a relação dele consigo mesmo, conduzindo-o à tentação de construir o ser perfeito. É, acho, uma mudança qualitativa semelhante à ocorrida quando a humanidade adquiriu o poder de destruir a si mesma com armas nucleares. Isso coloca ante nossa consciência questões éticas e morais novas, inclusive a da tutela da sociedade pela razão, levando-nos logo às questões da legitimidade do poder. Ora, uma alternativa à subordinação absoluta da sociedade à razão utilitária, a tutela pela religião, também não é aceitável, diz Ratzinger, posto que se deve desenvolver uma carta de direitos “cujos fundamentos não devem mais repousar na fé”. Ele afirma ainda: “as duas grandes culturas do Ocidente – a cultura da fé cristã assim como a cultura da racionalidade secular” não têm caráter de universalidade.
Qual a saída então? “É importante para esses dois grandes componentes da cultura ocidental [razão e fé] deixarem-se comprometer com um ouvir, com uma verdadeira correlação com essas culturas [não ocidentais]. [...] na qual estas se abram para uma complementaridade essencial entre razão e fé [...]”. Essa interculturalidade, acrescento, é bem diferente do relativismo que, por exemplo, justifica a mutilação genital de mulheres na África, sob o argumento de ser “a cultura deles”, ou apóia ditaduras de esquerda e condena as de direita.
Serão, essas, palavras e idéias de algum fanático ideológico ou religioso?
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